Parque das Dunas preserva área de Restinga entre Itapuã e Flamengo

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Com seis milhões de metros quadrados entre Itapuã e Praia do Flamengo, o Parque das Dunas é um dos maiores parques urbanos do Brasil. O entendimento da importância de preservação dessa área, porém, ainda não é consenso

Pede-se silêncio para ouvir o vento. Passando entre as árvores, no meio daquele clarão de mata fechada, esquece-se por alguns minutos que se está em Salvador. Jorge Santana, que faz as vezes de guia, é quem volta a falar para repetir à turma de estudantes da Universidade Federal da Bahia que a gente só conserva o que conhece, daí a importância de estarem todos ali reunidos. O lema o acompanha há vinte e dois anos, quando iniciou a luta pela criação e preservação do Parque das Dunas, área de seis milhões de metros quadrados que se estende de Itapuã até a Praia do Flamengo.

Parques urbanos

O lugar é um dos maiores parques urbanos do Brasil, com 680 hectares, atrás de áreas como o Parque das Dunas de Natal (RN), que possui 1.172 hectares, e do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ), com 3.953 hectares.

Numa quinta-feira calorenta de janeiro, Muito acompanhou uma das trilhas realizadas no local, para descobrir o que aqueles montes de areia escondem.

Alguns estudantes chegaram ao parque achando que iam passear, mas a professora Helianildes Ferreira, à frente da disciplina com o nome holístico de “Água, natureza e vida”, deixou logo claro que se tratava de uma aula de campo. E foi mesmo com uma aula que a trilha começou. Numa sala climatizada, Jorge, diretor-presidente do Parque, exaltou que estávamos prestes a ingressar num “túnel do tempo”, uma chance única de ver como era Salvador antes da urbanização desenfreada. Também aquele lugar estava destinado a virar um “mar de concreto”, diz, com jeitão de professor de cursinho, mas felizmente estava agora protegida com o Parque, criado oficialmente em 2008.

Pareceu que ia ser coisa rápida, só um preâmbulo para ambientar a caminhada, mas Jorge se empolgou e a apresentação se estendeu por quase uma hora. Empresário do setor de educação, ele apresentou as espécies de animais e plantas que já tinham sido catalogados no parque, e que com sorte veríamos em breve (no caso da jararaca, com sorte não veríamos). Nos slides passaram a orquídea cara-de-palhaço (que olhando bem até faz mesmo jus ao nome), o calango-do-Abaeté (coloridinho, tornou-se conhecido do mundo numa pesquisa realizada ali mesmo), o guajiru (fruto avermelhado bom para sarar dor de estômago). Terminada a apresentação – houve até a promessa de que um estagiário do parque iria comer a cabeça de uma barata–, era hora de se preparar para a trilha.

Jorge pôs os estudantes em linha e fez exercícios simples de alongamento, para aguentarem as “cinco horas de caminhada”. Nesse momento pensamos verdadeiramente em desistir, mas era piada – teriam outras muitas. Iríamos fazer a trilha média, de 3,5 Km. A mini tem 600 m e para os corajosos há uma de 12 Km. Não se empolgue muito daí do seu sofá pensando só na quilometragem. Some nessa continha o sol e o sobe e desce das dunas na areia fofa. De todo jeito, os esforços são bem recompensados.

Alongando antes da trilha – Fotos: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE | 22.01.2017

Um cachorro vai na frente do grupo para afastar os animais mais peçonhentos. Mas fique tranquilo que se você quiser justamente se encontrar com aquela jararaca, Jorge promete que sabe o caminho de achá-la. Avistamos logo, sem precisar caminhar muito, um animal mais fofo e simpático, a coruja buraqueira, que andava ali em casal. Jorge vai explicando que aquelas plantas que se avistam em todo canto são as responsáveis por manter as dunas no lugar. Do contrário, andariam por aí meio sem rumo. Ele repete que aquele é um lugar que “nunca foi antropizado”, embora àquela altura ainda desse para avistar as casas dos condomínios que ficam no entorno.

Corujas buraqueira

Um casal de argentinos desponta num triciclo. Queriam ir para a lagoa do Abaeté, mas pegaram o ônibus errado e aí vendo o Parque, entraram para saber do que se tratava. E diga a verdade, capaz de você aí, legítimo morador de Salvador, nunca ter tido essa iniciativa. Juntaram-se à turma de estudantes. De tanto em tanto, o grupo sentava-se em espaços com bancos e alguma sombra para ouvir os ensinamentos de Jorge. O caráter educativo do parque foi uma das razões para a conquista do título de Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica concedido pela Unesco em 2014. Por isso, Jorge diz que não pode ter ninguém de pé, porque “a Unesco tá de olho”.

R$ 20

esse é o preço da entrada. Mas alunos de escolas públicas não pagam.

Estavam de frente à uma lagoa, um das 12 do parque. A qualidade da água é monitorada pelos muitos grupos de pesquisa que atuam no local. É, muito possivelmente, o único lugar de Salvador onde as lagoas ainda têm água de boa qualidade. Numa delas, uma sucuri de 6 m deixou seu formato sinuoso em meio aos juncos que encobriam a água escura. Jorge explica que a área retém o calor e a chuva que poderiam castigar com maior intensidade a cidade, além de absorver a salinidade do mar, como uma barreira.

Os estudantes se divertem na trilha, parando a todo momento para fazer fotos com as plantas, como o bonsai natural que aparece solitário no meio da areia, ou os bichos miúdos que andam por lá quase invisíveis, como aquele insetinho pelo qual ninguém daria nada, mas que é venenoso, como indicam suas listras coloridas. Depois da mais íngrime subida de duna do percurso, avista-se uma torre de comando do aeroporto de Salvador, que fica ali ao lado. Os estudantes perguntam o que é aquilo, Jorge diz que é um “monstro”. Um menino prefere chamá-lo de “Transformer”. Alguém lembra de perguntar pelo estagiário que iria comer a barata, como se estivesse por todo o caminho só esperando por isso, mas perdemos de ver a cena. A volta, graças a Deus, é pela sombra. Reencontramos Salvador sem nunca ter saído dela, carregando um mundo de areia nos sapatos.

Laboratório

Só no ano passado, quase 46 mil pessoas visitaram o Parque das Dunas. A maioria vai assim, numa visita coordenada por um professor. Entre os estudantes, sobressaem os de escolas privadas. Aos poucos, vai crescendo o número de turistas avulsos (foram 5.300 em 2016). A entrada custa R$ 20, e são elas que mantém o parque, além de doações de empresários da região. Alunos de escola pública não pagam nada, e para fazer com que mais deles visitem o lugar, Jorge sonha em comprar um ônibus para transportá-los.

Além das trilhas interpretativas, o parque abriga cursos – como o de orientação de bússola, manuseio de drone e introdução à falcoaria – e eventos bem diversos entre si. Tem desde luau com queijos e vinhos nas noites de lua cheia até corrida organizada por academias, passando por encontros religiosos de espíritas, evangélicos e católicos.

O parque também funciona como um grande laboratório para pesquisadores. Atualmente, 24 pesquisas são realizadas no local. O biólogo Moacir Tinôco, coordenador do Centro de Ecologia e Conservação Ambiental (Ecoa), da Universidade Católica do Salvador (Ucsal), faz pesquisas na área há cerca de 10 anos. Além de monitorar a biodiversidade do local, ele estuda uma espécie em particular, o calango-do-Abaeté (Glaucomastix abaetensis), lagarto de cauda colorida morador das áreas de restinga, buscando-o nas dunas de Salvador até as de Mangue Seco. Uma das particularidades do bicho é que suas escamas são capazes de “refletir muito bem a luz solar”, e por isso não são muito afetados pelos raios ultravioleta, como Moacir explica.

O professor conta que a área do Parque das Dunas é a quarta mais preservada do bioma restinga no Esatdo, atrás de Massarandupió, Santo Antônio-Diogo e Busca Vida, nesta ordem. “A região do Conde é a que está mais ameaçada. Aqui, o parque está bem protegido. É uma área fundamental para preservar um recurso natural cada vez mais escasso, a água. Também interfere na qualidade de vida de Salvador, por criar uma barreira climática que impede que a salinidade vá para dentro da cidade, além de atuar dramaticamente no clima. Sem aquela área, a temperatura de vários bairros iria subir muito”.

Terreno

O entendimento da importância de se preservar aquela área não foi sempre ponto pacífico, muito ao contrário. O rumo natural da coisa seria que o local fosse utilizado na expansão urbana da cidade. Era nisso que apostavam seus 16 proprietários, que resguardavam a área para lucrar no futuro. Jorge era um desses donos, mas tinha outras ideias em mente. Em 1994, comprou uma propriedade de 150 mil metros quadrados num leilão de uma empresa falida da construção civil com o objetivo de transformá-la num laboratório natural de biologia para uma faculdade privada que iria inaugurar.

O lugar já integrava a Área de Proteção Ambiental (APA) das Lagoas e Dunas do Abaeté, instituída por decreto estadual em 1987, mas ainda não possuía zoneamento. Na prática, era possível erguer qualquer construção no local. Até mesmo o Estado, que assinou o decreto, pensava (ou ainda pensa?) em utilizar parte da área para ampliação do aeroporto. “Nessa época, fazer meio-ambiente dentro da cidade era muito difícil. Todo mundo via isso aqui como um monte de areia. Não se dava grande importância. Aí começamos a estudar a área”, conta Jorge.

Trilhas

Existem 3 tipos: média, de 3,5 Km; a mini tem 600 m; e a de 12 Km.

Em 1999, ele diz que visitou seus vizinhos para espalhar a ideia de que queria que aquele lugar abrigasse um parque urbano. “Salvador tinha dunas de Amaralina até aqui, a Praia do Flamengo. E só essa área tinha restado”. Conta que os proprietários não quiseram embarcar na história, mas ele os teria convencido com o argumento de que de todo jeito aquela área estaria destinada ao aeroporto. Seriam indenizados por um ou por outro. Conta que assim acabou conseguindo uma procuração dos donos das terras e se fortaleceu com o apoio de professores universitários e ambientalistas.

No começo dos anos 2000, intensificou-se a realização de trilhas no local, até que em 2002 veio o zoneamento, indicando a área como de uso especial. Em 2008, institui-se o primeiro decreto, oficializando o local como de utilidade pública. O documento previu indenizar os antigos proprietários com as polêmicas Transcons (Transferências do Direito de Construir), espécie de moeda de troca do mercado imobiliário, na gestão do ex-prefeito João Henrique.

Em 2011, outro decreto municipal delimitou o Parque das Dunas, ampliando-o até o Abaeté. No ano seguinte, um novo documento determinou que o parque, com fins estritamente “científicos, culturais e educativos”, seria administrado pelo órgão ambiental da cidade ou em gestão compartilhada com uma organização da sociedade civil de interesse público (oscip) – no caso, a Unidunas, dirigida por Jorge.

O lugar é um dos maiores parques urbanos do Brasil, com 680 hectares, atrás de áreas como o Parque das Dunas de Natal (RN), que possui 1.172 hectares, e do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro (RJ), com 3.953 hectares.

Fonte: A Tarde

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