Um homem que inspirava a contação de histórias folclóricas sobre ele, um provocador de risos gerais e, ao mesmo tempo, um ícone da contracultura na resposta à ditadura militar brasileira. Os predicados do psicólogo e boêmio Juvenal Silva Souza, o “Juvená, O Animal”, são muitos, e dão certeza de que a presença dele em Salvador não se encerra com a sua morte, aos 78 anos, na manhã deste domingo (30), após complicações da covid-19.
Dono de uma das barracas mais famosas do bairro de Itapuã, o velho barbudo despediu-se do plano terrestre, deixando por aqui muitos mitos sobre a sua figura.
Preso por diversas vezes pelo regime militar, Juvená levou dois tiros — no braço e abdômen — em uma passeata estudantil em 1968, que protestava contra a invasão do Dops à sede da UNE, em São Paulo.
Resistente à repressão das décadas de 1960 e 1970, ele só foi anistiado recentemente, há dez anos, pela 53ª Caravana da Anistia, a mesma que perdoou o também baiano Carlos Marighella e outros 14 presos políticos do regime. No mesmo ano de sua anistia, em 2011, foi o homenageado da Lavagem de Itapuã devido às suas contribuições culturais para o bairro.
Nascido no distrito de Bravo, no pequeno município baiano de Serra Preta, ele se formou em Psicologia na primeira turma do curso da Ufba, e foi morador da residência universitária localizada no Corredor da Vitória.
Se é folclore ou não, não se sabe, mas conta-se que, no dia da solenidade de sua formatura, Juvená chegou ao evento montado em um jegue. Ninguém confirma, nem nega, porque a graça está em manter a lenda.
Juvená era um dos mais conhecidos barraqueiros de Salvador (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) |
Grande admirador das festas de largo de Salvador, Juvená começou a trabalhar ainda na faculdade, montando uma barraca de bebidas de nome “K Tispero”, um dos points da juventude universitária da época.
Tudo teria começado nas celebrações populares da Conceição da Praia, mas a barraca itinerante também era colocada em outras festividades da Ribeira, Pituba e Rio Vermelho, e depois se estabeleceu fixamente por 40 anos na praia de Itapuã, até ser demolida, em 2010, junto a todas as outras após determinação judicial.
“Tudo acontece numa barraca. Era pura e simplesmente o povo, tinha roda de capoeira e tudo o que era condizente com a cultura popular.”, declarou Juvená, em vídeo, na ocasião do tributo na lavagem.
Quando a sua barraca deixou de existir, ele sofreu um baque emocional e declarou ao CORREIO que seu maior prazer era trabalhar perto do mar, sentado debaixo de um dos sombreiros. Após a demolição, ele abriu o bar “Espaço Eco-Etílico Juvená”, na Rua Passárgada, no mesmo bairro, ao lado do Hotel Deville, onde promoveu exposições, shows e saraus.
Ao ser homenageado na Lavagem de Itapuã, ele disse que se sentiu tão honrado que a primeira atitude foi quase de recusa, por acreditar que não tinha sido assim tão importante para o bairro. “Mas como amo terrivelmente Itapuã, jamais vou recusar e agradeço muito”, disse.
Com suas roupas características, que incluíam um shortinho, camisetas coloridas, chapéu do tipo fedora e uma charmosa presilha na enorme barba branca, ele dizia que seu bar era onde se encontravam loucos, beberrões e pessoas que queriam viver com alegria. Ele foi casado com Maria Auxiliadora Brandão Souza, a sua Doia, grande parceira na gerência da barraca.
Testemunhas de Juvená
O artista plástico Ives Quaglia, autor de algumas das baleias da Lavagem de Itapuã, diz que Juvená deixou um legado de muitas contribuições para as festas populares de Salvador, sobretudo de Itapuã, onde o boêmio morou “efetiva e afetivamente”. O amigo brincou que os que ficam são “Testemunhas de Juvená” e despediu-se assim: “Vá com os deuses do espaço eco-etílico do universo quântico!”, escreveu ele.
Amigo do psicólogo e frequentador da barraca, Sérgio Guerra conta que estudou na Ufba por volta de 1969 e, naquela época, Juvená já era tratado como um ser mitológico. Contava-se, já na descaração juvenil, que ele teria vindo da Europa para o Brasil em um navio e que bebeu perfume francês durante a viagem. “E ele brincava, dizia que não, que foi uma argentina que veio junto que bebeu. Já conheci Juvená como o homem que bebeu perfume francês porque era o único álcool que tinha”, ri Guerra.
“Ele não era um cara que contava histórias, as pessoas é que contavam histórias sobre ele. Era um bon-vivant, mas era recolhido. Tem muito folclore sobre a vida dele porque ele foi um cara anárquico”, diz. Brincava-se que o bar de Juvená era o consultório dele, onde praticava a psicologia peripatética. Um bloco com o nome Testemunhas de Juvená foi feito no Carnaval e Doia foi nomeada a Rainha Moma. O barbudo teria, ainda, se candidatado, por volta dos anos 1980, ao posto de deputado, mas não foi eleito, “graças a Deus”, ri o amigo.
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(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)A fachada da Barraca do Juvená nos anos 1980 (Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)(Foto: Reprodução/Espaço Juvená)
Em suas redes sociais, o cantor Carlinhos Brown referiu-se à barraca de Juvená como um “bar- embaixada”, um ponto de encontro de intelectuais e artistas como Antônio Risério, Moraes Moreira e Fia Luna. Definiu o boêmio como griô — aquele que na comunidade detém a memória do grupo e funciona como difusor de tradições. “Foi lá que o atabaque deu espaço à rebeldia do timbau, fazendo as ruas prestarem atenção aos mais doces ogros percussivos. A arte permeava esse lugar”, escreveu.
Morador da região de Itapuã, o empresário Antônio Nascimento, 53, ex-jurado do Comida de Boteco, lembra que Juvená era caladão, um tipo muito mais de ouvir do que de falar, mas quando abria a boca, soltava sempre algo forte, memorável. Nascimento recorda ainda que, em sua adolescência, ficou marcada a imagem do barbudo dirigindo seu bugre pelo bairro e a meninada a gritar: “Juvená! Juvená!”. https://www.youtube.com/embed/i397yQNdHLQ
“Era tipo um herói de revista em quadrinho, mas ele não era um personagem, ele era aquilo mesmo. Com certeza quem conviveu com ele deve ter um livro de citações dele. Ele tinha umas placas no bar que diziam ‘Cuidado, bêbados na pista’ e ‘Ar-condicionado natural. Quem não gostar, favor dirigir as reclamações a Deus’”, recorda aos risos. Ainda segundo Nascimento, os frequentadores da casa eram muito mais os intelectuais, gente que compartilhava dos pensamentos libertários e libertinosos de Juvená.
Em suas memórias mais fortes, estão mesmo a imagem da barraca na praia, onde Juvená era como uma parte da paisagem. O boêmio estava sempre sentado conversando com as pessoas. “Era um bonachão, não existe outro Juvená, ele é imortal”, diz.
O psicólogo estava internado desde quarta-feira no Hospital da Bahia. O corpo dele foi cremado na tarde de domingo, em cerimônia restrita, no Cemitério Jardim da Saudade.Juvená deixa mulher, dois filhos e duas netas.
(Foto: Antônio Saturnino / Arquivo) |
Fonte: Correio da Bahia